quarta-feira, agosto 20, 2014

O Doador - Lois Lowry


“Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana. ” (Marguerite de Crayencour)


No último fim de semana chegou ao cinemas americanos o filme The Giver/O Doador, uma adaptação do livro de mesmo nome, de Lois Lowry. Um filme que muito de nós tem estado à espera desde de nossos anos de adolescência. Como uma preparação para isso, acho que quem o leu, como eu, nesse estagio da vida, seria bom revisita-lo agora que ele ganha a tela grande. Em um mundo de Jogos Vorazes, Divergente e muitos romances/filmes de aventura adolescente populares e novos gostaria de escrever sobre o porquê desse livro um pouco mais velho ainda ser importante.


A bela capa do original americano
Depois de contar nos dedos das mãos as pessoas que conheço e que já leram este livro, por aqui, mesmo existindo uma edição em português há mais de vinte anos, posso dizer que muitos jovens adolescentes americanos já leram ou foram obrigados a ler as 200 paginas deste romance para jovens adultos. E se você ainda não leu deveria. Ele não é apenas uma porta de entrada para a ficção científica, mas também é uma obra de apelo adolescente, que infelizmente, ficou enterrado sob o excesso de sua popularidade dentro do próprio gênero. Mas depois que você tirá-lo para fora, sacudir a poeira e novamente lhe correr os olhos verá que ele merece mais que uma adaptação cinematográfica. Tenho esperança que essa adaptação crie mais leitores para obra. Mas deixe-me mostrar um pouco dele antes que o filme chegue por aqui:

Para aqueles de vocês que não sabem, O Doador é ambientado em um futuro distante, onde o partido governante eliminou todas as diferenças e os aspectos emocionais da sociedade. Esta sociedade do futuro reverencia a mesmice e amortece as emoções do publico com medicação. Ninguém experimenta a dor real, ou o amor, ou a tristeza ou qualquer emoção em tudo, porque tudo que é desagradável (assim como a simpatia pelo assunto), foi desbastado nessa nova sociedade. A história gira em torno de Jonas um menino que é o escolhido para ser "o Receptor", uma posição de honra dentro da sociedade. Seu professor seria o "o Doador". Juntos, eles passariam as memórias que continham atributos menos que desejável para a sociedade futura possuir. Naturalmente as coisas desmoronam.

Você é um adulto

Na minha memória embaçada de adulto uma leitura do meu passado e de alguns livros que li, nenhum habilitou melhor o meu cérebro jovem do que O Doador. O protagonista é um garoto que acaba de completar 12 anos, e ainda assim ele é um individuo brilhante que pode farejar problemas muito rápido. Com certeza, sua vida tem sido muito manipulada pelo governo, por isso leva algum tempo, mas ele pegar as coisas muito rapidamente.

Cartaz do filme
Depois temos o seu trabalho como individuo dentro da sociedade, a ele é atribuída a função de receber todas as memórias desagradáveis (e agradáveis) do mundo do doador. E nem todas são doces lembranças que descem de trenó colina a baixo; Jonas está sobrecarregado com as memórias de dor, guerra e ódio intenso. O ritmo alucinante e implicável do livro impinge atrocidades após atrocidades na mente de Jonas e ele tem que lidar com tudo isso. Isso não quer dizer que ele não fique chocado ou sinta repulsa, mas a ideia de que o cérebro de uma criança de 12 anos pode compreender tal horror foi maravilhosamente colocada. Cada memória infeliz recebida por Jonas foi digerida de uma forma que era respeitosa com a inteligência do leitor. As lembranças se não mimam o leitor, quer no entanto que o desastre do trenó fique para sempre em sua cabeça. Jonas está em um trenó descendo uma colina quando ele cai e quebra a perna, expondo sangue e ossos, e sua mente segue para uma nova sensação de dor, em resposta ele vomita na neve. Há uma imagem-lembrança de Jonas onde um elefante é cortado até a morte por caçadores o que me fez pensar que o autor está dizendo para a geração mais jovem que eles podem lidar com coisas maiores do que eles compreendem. Foi extremamente legitimador ler algo assim quando jovem, era claramente algo que nenhum de nós tínhamos experimentado antes, e isso ia contra a maioria das histórias que escutávamos naquela idade.

Nós somos o nosso pior inimigo

O mote da atual literatura para jovens-adultos é o adulto grande e mau contra a criança teimosa. Presidente Snow (Jogos Vorazes), Janine Matthews (Divergente), Serafine Duchannes (Beatiful Creatures) são todos adultos ambiciosos e motivados pelo desejo de poder. Eles são o problema, e cabe ao jovem protagonista derruba-los. Não existe essa figura de vilão em O Doador. Não há nenhum vilão distorcendo as coisas, puxando cordas tentando atirar Jonas em um penhasco ou o impedindo de crescer. Na verdade, a sociedade só incentiva Jonas a ter sucesso em seu trabalho como receptor para que possa viver em seu mundo incolor e inconsciente. A instituição é o problema. Jonas deve questionar o próprio mundo em que vive e os valores em que ele foi criado para acreditar em tudo por conta própria. O Doador confere-lhe poderes para questionar a sociedade em que vive, não a cabeça flutuante e imaginária de algum assistente. Omitir um protagonista físico torna os civis inconsciente e entes queridos de Jonas para o mesmo problema que o nosso personagem terá que enfrentar. É como se a narrativa nos informasse que, enquanto jovem, devemos questionar o mesmo sistema que estamos disposto a participar e que os problemas nem sempre vem com uma careta adulta. O problema pode ser também um ideal em que seus próprios pais o inscreveram.

Adulto "Stirrings"(?)

O Livro lida brevemente com o florescimento dos impulsos sexuais dos jovens de uma forma interessante. O livro chama esses sentimentos de "stirrings". O primeiro encontro de Jonas com suas próprias agitações sexuais são compartilhada com o leitor em um sonho: "eu queria que ela tirasse a roupa e entrasse na banheira". Jonas se esforça para nomear a emoção que ele esta sentindo, mas ele não pode descrever o seu real desejo. Depois de revelar suas agitações, ele toma uma pílula que suprime sua sexualidade nascente. E é isso.

Como logo fica patente no livro, este estilo de vida censurado não é uma maneira boa e saudável para se viver. É uma vida sem cor, sem paixão profunda ou emoções fortes. E com a distribuição de pílulas para suprimir os impulsos sexuais, o romance está afirmando que a sexualidade é uma parte importante da vida. É como uma afirmação de que isso é algo natural para os jovens adultos que tem seus hormônios em ebulição nessa fase da vida. Com certeza o livro não gasta muito do seu tempo explorando as profundezas da sexualidade adolescente, o que nós lemos e tudo do ponto de vista de Jonas, mas é o suficiente como afirmação de que seja algo que não se deve suprimir, e isso é uma grande ajuda para uma mente jovem.

A Rede Neural

O conceito de rede neural criado por Lois Lowry é um elemento scify maravilhoso que nunca foi totalmente concretizado nos livros (exceto em Neuromancer, de Gibson), mas inspirou muitos a pensar um pouco sobre o potencial de conexões telepáticas. O escritor e editor Dave Gonzales compartilha o que a rede neural significa para ele:


"Era a primeira vez, como jovem fã de ficção científica, que eu contemplava uma história com uma ideia da população humana conectada por uma rede neural. Se jonas e o doador são capazes de armazenar e compartilhar memórias, memórias que precisavam ser catalogadas e armazenadas, teria que ser  um grau inacreditável de telepatia na evolução futura da raça humana, ou - um experimento mental mais divertido - com a população humana dominando a rede neural, e os "The Elders" usando dispositivos de escuta nas casa por causa disso. Provavelmente não seja uma rede neural de acesso remoto, mas para controlar a população no nível desejado, seria muito mais fácil se você pudesse vigiar ao redor, os sistemas de pensamento de cada membro não liberado da sociedade. E se a rede ficasse "bugada"? qual o resultado disso? Eu pensei tanto nisso, que cheguei a William Gibson com seu Neuromancer e um cara chamado Keannu Reaves/Neo/Johnny Mneonic expandindo meu pensamento para uma rede neural no Matrix de 1999"

Um portal para romances scify

O Doador não foi o primeiro livro sobre uma distopia já escrito, mas como você pode ver, ele foi o primeiro livro de ficção cientifica de muitos leitores. Não era bem o meu primeiro romance de ficção científica, mas foi o meu primeiro flerte para uma distopia. O Doador me levou a outros romances como Brave New World, 1984 e outros autores como K. Dick. Foi um incêndio inicial para outras leituras scify, e foi escrito de uma forma acessível apara abrir a mente dos mais jovens e que se ramifica em outras leituras do gênero.

O Doador pode ter sido publicado há mais 30 anos, mas os temas presentes em sua narrativa ainda são importante hoje. E consegue tudo isso sem ter que matar um bando de crianças em uma ilha ou injetar nele um triangulo amoroso. É um virar de paginas implacável do inicio ao fim que leva o leitores mais jovem a questionar a sua própria existência e seu lugar nesse mundo.

Se você simplesmente ler O Doador até o seu final ainda não saberá o que acontece com Jonas. Sua conclusão está em aberto. Talvez ele estivesse apenas imaginando esse novo mundo até morrer em meio a neve. Não foi lhe dito o que pensar antes disso, esse era o ponto. Então vá em frente e brigue por isso.

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