sexta-feira, outubro 25, 2013

A Peleja do Diabo Com o Dono do Céu - Zé Ramalho, ou: Fantoches feitos de pano de chão

Dia 298.

Apresentação - Zé Ramalho

"Foi o meu segundo disco. Veio implacável, com letras furiosas e políticas, ditas num tom profético e nordestino, passando para a época uma fornada de músicas, que marcaram a minha carreira para sempre. Aqui neste disco estão: "Admirável Gado Novo" (que virou hino popular), "Garoto de Aluguel" e "Beira-Mar", além de "Jardim das Acácias" e "Frevo - Mulher". Gravado em 1980, tem um sabor de luta e vitória, amor e revolta, que o poeta sentia na época em que fez estas canções. Tempo de ditadura militar e perseguição aos artistas. Na capa, aparece ao meu lado, o genial José Mojica Marins (Zé do Caixão), que representou a figura do diabo nesta imagem de cordel e surrealismo que criamos para ilustrá-la."

Zé Ramalho lançou "A Peleja Do Diabo Com o Dono Do Céu" em 1980, e este é considerado um dos seus trabalhos mais exitosos. Foi deste disco meio lírico/meio psicodélico-progressivo e nordestino que saíram as clássicas "Admirável Mundo Novo", "Beira Mar", "Garoto de Aluguel" e "Frevo Mulher".



Mas as outras faixas... Zé Ramalho nos mostra suas profundezas. Os arranjos caprichados, sua voz meio anasalada, os versos intensos e orgânicos, o violão-guitarra tocando raios e chicotadas... que trabalho lindo e orgânico! É como se a música de Zé brotasse diretamente de seu sangue fervente, e de suas lágrimas.

"A Peleja Do Diabo Com o Dono Do Céu" fala da eterna luta entre o que em nós há de apolíneo e o que é dionisíaco. Abrace um lado e espere o outro fermentar e explodir em estilhaços fumegantes.

O poder da poesia-palavra e todas as suas consequências, dores e amores. Cada frase uma punhalada e um beijo, honestidade escondida num olhar furioso, rancoroso, breve e eterno.

Zé se aventura pelo choro, pelo rock, pela música nordestina, pela canção profética e apocalíptica de uma maneira soberba e cheia de texturas. A participação de Amelinha em "Pelo Vinho e Pelo Pão" é de uma lindeza tão profunda que quase nos faz chorar. A música em si possui uma verdade tão certeira que se tornaria sucesso também na voz de Raimundo Fagner.

"As Falas Do Povo" traz o ritmo sincopado de uma canção antiga e lamentosa que nos traz à mente uma impressão de Velho Testamento e fatalismo. Estamos sós em nossas cidades, encruzilhadas e armadilhas. Presos em casa, somos apenas colecionadores de tesouros, como dragões egoístas que se pretendem imortais enquanto atravessam, incólumes, a violência das eras.

"Garoto de Aluguel" é uma lágrima-pérola-diamante de sangue. Um choro pela inocência perdida, o lamento pelo prazer e pela culpa com seu arranjo clássico e a voz potente e chorosa de Zé a esfregar-nos na cara a beleza e a sujeira do ato de sentir, ao mesmo tempo, amor e culpa. Sexo é dinheiro, tempo é dinheiro. Não temos mais tempo.

O "Mote Das Amplidões" é uma cavalgada desesperada e sem objetivo pelo sertão do mundo. Tudo passa na velocidade de um corisco, do vento, do sangue que se esvai pelo talho feito pela peixeira. Ida sem volta, rumo sem prumo, deixar para trás apenas as pegadas. O mundo é feito de caminhos, e eu quero trilhar todos antes de morrer.

"Jardim Das Acácias" é a faixa mais Rock 'N' Roll do disco. Guitarras e raios cruzam os céus desta música e apresentam a dor de Zé pelo tédio e a perda de sentido da vida na cidade. Vivemos esperando por algo que não sabemos, abrimos mão de nossas lutas, apostamos em miragens e desprezamos as lições que a morte ensina.

Somos apenas joguetes. Fantoches feitos de pano de chão pela Vida, esta prostituta traiçoeira e extremamente sensual. 

Esse jogo vai acabar custando tudo o que você tem.

"Agônico" é isso, um suspiro que pode significar cansaço extremo ou morte iminente. Ou ambas. De uma beleza selvagem e seca, traz em nosso rosto a poeira vermelha dos séculos e fere nossos olhos, nossa sombra, nossa dúvida. Seguir ou continuar até a escuridão?

"Frevo Mulher" encerra o disco com uma escuridão úmida e tensa. Não há esperanças em amar uma mulher: apenas há aquela sensação de que se está perdendo algo: algo que deixamos de fazer. Por mais que as amemos, sempre fica algo em débito. Nunca se pode completá-las, nunca se consegue satisfazê-las. Nunca a sensação de dever cumprido.

"(...)Gemeram entre cabeças
A ponta do esporão
A folha do não-me-toque
E o medo da solidão


É quando o tempo sacode a cabeleira
A Trança toda vermelha
Um olho cego vagueia procurando por um..."


Despeço-me aqui hoje com a sensação de ter vivido uma vida em mil. Ouvir Zé Ramalho em sua "Peleja..." é como assistir à luta entre titãs, ou à aposta matreira feita entre a Divindade e o Adversário pela fidelidade de Jó.


Longos dias e belas noites.

*     *     *

P.S.: Existe uma similaridade muito interessante entre "Jardim das Acácias", do Zé Ramalho, e "Gas Panic!", do Oasis. Sintam-se tentados a ouvi-las e sentir a harmonia. Segredos foram contados - quem tiver ouvidos para ouvir ouça.





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