Dia 240.
E oportunidades que jamais devem ser dadas - pois elas serão irresistíveis, e suas consequências serão devastadoras.
Começo assim o texto de hoje porque um disco que começa com "Dream Brother" tem tudo para ser uma dessas negras possibilidades de olhar para dentro do abismo de si mesmo, e encarar "os monstros de nossa própria criação". Esta música tem um poder destrutivo e uma qualidade noturna tão grande que ela, sozinha, é capaz de aniquilar uma mente fraca. A guitarra e a voz de Jeff funcionam aqui numa unidade orgânica e indivisível, dando condutividade à essa estranha energia que vem de outras dimensões e que nos revela a nossa metade mais escura. Esta sendo a primeira do disco nos diz muito: O Irmão do Sonho é aquele que dorme por trás de nossos olhos, que espreita e, eventualmente, toma o controle. Ele é o "Outro", aquele de quem sua mãe falava para que você tivesse cuidado. Seu pior inimigo e seu amigo inseparável.
Don't be like the one who made me so old
Don't be like the one who left behind his name
'Cause they're waiting for you like I waited for mine
And nobody ever came
"Mojo Pin", canção que nos relata um sonho seu, é uma balada dissonante e sensual que nos dá aquela paixão distorcida de Jeff. Uma música dotada de uma sensualidade feminina úmida e fecunda, algo de secreto e escuro, algo inatingível e convidativo - como uma armadilha, uma fruta envenenada, uma mulher. Em "Mojo Pin", sua voz vai do grave ao agudo de maneira tão assombrosa que nos espanta com sua capacidade vocal. O arranjo perfeito, o tempo pouco usual... Buckley não pertencia a este mundo - daí o fato de daqui ter partido tão cedo. A galera delira e se esvai em gritos e aplausos no meio da apresentação. Incredible.
"Lilac Wine", imortalizada pela inexplicável Nina Simone, ganha aqui uma versão bela, suave e extremamente amorosa e sofrida. Como todo amor, feita de promessas e arrependimentos, mostra porque Jeff foi considerado o artista mais talentoso de sua geração. Amar e perder-se nas névoas do álcool e das dúvidas, das desculpas, das justificativas falhas... Ah...
"Last Goodbye" é outro grande momento do disco. Nesta música Jeff nos mostra seu controle e sua virtuose com a guitarra, destilando todo seu talento com O Instrumento. Uma canção de amor em alta velocidade, a tristeza da despedida gritada pela guitarra e pela voz rouca, ele nos mostra como seria dizer adeus de uma maneira espantosamente atual. Mas o sentimento de perda continua ali, atrás dos olhos. Um último adeus, um último beijo antes de o desejo acabar por completo.
"Eternal Life" e "Grace" são as mais Rock 'N' Roll do disco, com uma guitarra assassina e um desejo violento de perverter qualquer pureza que haja ainda em seu coração, mas sem perder a ternura jamais. Algo para se ouvir de olhos fechados enquanto se bate o pé e balança a cabeça para a frente e para trás enquanto se tenta lembrar de tudo o que já foi e do que poderia ter sido. Pura destruição.
"Lover, You Should've Come Over" é aquela em que teu coração é finalmente destruído em pedaços de vidro e lágrimas. Sim, você deveria ter vindo, não importa como. Eu precisava de você de uma maneira que ninguém jamais compreenderá. O amor é tanto, uma fome, uma sede, uma tempestade. O tempo é nada, velho e novo confundem-se nesta necessidade, nesta ausência de luz, neste império de Trevas da solidão e do vazio. Eu te espero em chamas e ansio pelo teu retorno. Você deveria ter vindo.
Mas ainda dá tempo.
Chega então o momento de perceber que Jeff realmente era algo para além do humano num medley que junta "Hallelujah" - de Leonard Cohen - e "I Know It's Over" - dos Smiths. A voz de Jeff Buckley une estas duas músicas num hino ao amor e à perda com uma doçura angelical. Sabe aquele sentimento que você teve ao escutar estas duas músicas em suas versões originais pela primeira vez? E você lembra que você disse "Isso não pode nunca ser melhorado, é perfeito!", lembra?
Pois Jeff nos mostra que estávamos errados. Esta versão dupla de covers é melhor que as músicas originais - à sua maneira. Ele toma as músicas para si, ele as descaracteriza, ele as reconstrói. Ele se torna a música encarnada.
Jeff Buckley deveria ser proibido. Faz com que vejamos partes de nós que deveriam estar escondidas e enterradas para sempre.
"Mistery White Boy" é um daqueles discos que se deve ouvir antes de morrer. E antes de renascer. E antes de envelhecer.
Pela verdade. Pela beleza. Pela destruição. Pela violência. Pela desagregação e pelo amor.
Por tudo, por nada, por mim e por você.
Hallelujah, I Know It's Over.
Boa noite a todos e muito obrigado.
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