quarta-feira, agosto 28, 2013

Mystery White Boy - Jeff Buckley, ou: Há coisas que você nunca deve saber sobre si mesmo.

Dia 240.

Há coisas que você nunca deve saber sobre si mesmo. Isso te mantém são, e evita que você perca a fé em si mesmo e, por extensão, na humanidade.



Sabendo disso, há músicas que nunca devem ser escutadas, filmes que não devem ser vistos, livros que não devem ser lidos, comidas que nunca devem ser provadas e pessoas que nunca, mas nunca mesmo, devem ser consumidas.

E oportunidades que jamais devem ser dadas - pois elas serão irresistíveis, e suas consequências serão devastadoras.


Começo assim o texto de hoje porque um disco que começa com "Dream Brother" tem tudo para ser uma dessas negras possibilidades de olhar para dentro do abismo de si mesmo, e encarar "os monstros de nossa própria criação". Esta música tem um poder destrutivo e uma qualidade noturna tão grande que ela, sozinha, é capaz de aniquilar uma mente fraca. A guitarra e a voz de Jeff funcionam aqui numa unidade orgânica e indivisível, dando condutividade à essa estranha energia que vem de outras dimensões e que nos revela a nossa metade mais escura. Esta sendo a primeira do disco nos diz muito: O Irmão do Sonho é aquele que dorme por trás de nossos olhos, que espreita e, eventualmente, toma o controle. Ele é o "Outro", aquele de quem sua mãe falava para que você tivesse cuidado. Seu pior inimigo e seu amigo inseparável.




Don't be like the one who made me so old
Don't be like the one who left behind his name
'Cause they're waiting for you like I waited for mine
And nobody ever came

E assim é "Mystery White Boy" (2000): um apanhado de canções gravadas durante as turnês de 1995 e 1996 de "Grace", O Trabalho de Buckley. Como na maioria de suas apresentações ao vivo, vemos em "Mystery White Boy" a energia e a paixão de Jeff. Num momento podemos vê-lo como um louco com uma guitarra; em outro, ele aparece como a reencarnação de Jim Morrison; mais na frente ele nos surpreende com o poder do Blues; e adiante uma nova reviravolta nos traz um romântico incurável. Assim era Jeff Buckley, alguém que tinha acesso à Fonte da música, e que bebeu tanto dela, e que tanto nos deu dela que tornou-se uma divindade. 

"Mojo Pin", canção que nos relata um sonho seu, é uma balada dissonante e sensual que nos dá aquela paixão distorcida de Jeff. Uma música dotada de uma sensualidade feminina úmida e fecunda, algo de secreto e escuro, algo inatingível e convidativo - como uma armadilha, uma fruta envenenada, uma mulher. Em "Mojo Pin", sua voz vai do grave ao agudo de maneira tão assombrosa que nos espanta com sua capacidade vocal. O arranjo perfeito, o tempo pouco usual... Buckley não pertencia a este mundo - daí o fato de daqui ter partido tão cedo. A galera delira e se esvai em gritos e aplausos no meio da apresentação. Incredible.

"Lilac Wine", imortalizada pela inexplicável Nina Simone, ganha aqui uma versão bela, suave e extremamente amorosa e sofrida. Como todo amor, feita de promessas e arrependimentos, mostra porque Jeff foi considerado o artista mais talentoso de sua geração. Amar e perder-se nas névoas do álcool e das dúvidas, das desculpas, das justificativas falhas... Ah...

"Last Goodbye" é outro grande momento do disco. Nesta música Jeff nos mostra seu controle e sua virtuose com a guitarra, destilando todo seu talento com O Instrumento. Uma canção de amor em alta velocidade, a tristeza da despedida gritada pela guitarra e pela voz rouca, ele nos mostra como seria dizer adeus de uma maneira espantosamente atual. Mas o sentimento de perda continua ali, atrás dos olhos. Um último adeus, um último beijo antes de o desejo acabar por completo.

"Eternal Life" e "Grace" são as mais Rock 'N' Roll do disco, com uma guitarra assassina e um desejo violento de perverter qualquer pureza que haja ainda em seu coração, mas sem perder a ternura jamais. Algo para se ouvir de olhos fechados enquanto se bate o pé e balança a cabeça para a frente e para trás enquanto se tenta lembrar de tudo o que já foi e do que poderia ter sido. Pura destruição.

"Lover, You Should've Come Over" é aquela em que teu coração é finalmente destruído em pedaços de vidro e lágrimas. Sim, você deveria ter vindo, não importa como. Eu precisava de você de uma maneira que ninguém jamais compreenderá. O amor é tanto, uma fome, uma sede, uma tempestade. O tempo é nada, velho e novo confundem-se nesta necessidade, nesta ausência de luz, neste império de Trevas da solidão e do vazio. Eu te espero em chamas e ansio pelo teu retorno. Você deveria ter vindo. 

Mas ainda dá tempo.

Chega então o momento de perceber que Jeff realmente era algo para além do humano num medley que junta "Hallelujah" - de Leonard Cohen - e "I Know It's Over" - dos Smiths. A voz de Jeff Buckley une estas duas músicas num hino ao amor e à perda com uma doçura angelical. Sabe aquele sentimento que você teve ao escutar estas duas músicas em suas versões originais pela primeira vez? E você lembra que você disse "Isso não pode nunca ser melhorado, é perfeito!", lembra?

Pois Jeff nos mostra que estávamos errados. Esta versão dupla de covers é melhor que as músicas originais - à sua maneira. Ele toma as músicas para si, ele as descaracteriza, ele as reconstrói. Ele se torna a música encarnada.

Jeff Buckley deveria ser proibido. Faz com que vejamos partes de nós que deveriam estar escondidas e enterradas para sempre.

"Mistery White Boy" é um daqueles discos que se deve ouvir antes de morrer. E antes de renascer. E antes de envelhecer.

Pela verdade. Pela beleza. Pela destruição. Pela violência. Pela desagregação e pelo amor.

Por tudo, por nada, por mim e por você.

Hallelujah, I Know It's Over.



Boa noite a todos e muito obrigado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por comentar no 01Pd! Seja bem vindo e volte sempre!