segunda-feira, agosto 26, 2013

Five Tango Sensations - Ástor Piazzolla e Kronos Quartet, ou: "O agora nunca chega e sempre passa".

Dia 238.

Ástor Piazzolla e o Kronos Quartet reuniram-se para elaborar este disco poderoso e intenso. Tango, paixão, violência, amor e medo. Fogo selvagem que queima, cura, purifica, destrói.


Cada faixa é um sentimento. Uma mini-história. Eles deram a música, eu abri as portas de meus eus alternativos e deixei-os sair para uma voltinha na praça à noite.

Que vocês possam apreciar ao menos a música.


1. Asleep

Você gostaria de estar dormindo, mas a escuridão da noite não te traz nenhum consolo. Cada segundo parece pesar uma tonelada, e hoje - logo hoje - todas as suas culpas resolveram doer como se fossem novas.

Rolar na cama, deitar em outra posição, abolir o travesseiro, ler um livro, ligar a TV... nada parece dar resultado. A luz acesa machuca; apagada evidencia a densidade do escuro, que te envolve como uma capa oleosa e cheia de medos urbanos e arrependimentos mundanos.

Você deseja dormir e sonha acordado em meio à névoa da insônia. Sonha que dorme. Sonha que sonha.

Mas a escuridão te mantém acordado sem nenhum consolo.



2. Loving

Não pensar nela é uma ordem que não se pode seguir, por mais que se queira, por mais que se tente. É uma obsessão, aquela ideia que te persegue nos momentos entre a inspiração e a expiração. Ver seu rosto nas janelas dos ônibus e dos carros, cantarolar aquela música que ela adora, viajar no perfume de alguém que passou perto demais e imaginar que poderia ser ela...

Como esquecê-la? Eu não posso, não devo, não quero estar apaixonado, mas lutar contra isso é como arrancar fora uma parte de mim que é boa e essencial. Amá-la é como acordar atrasado para o trabalho e lembrar que é feriado... ou como ver o mar pela primeira vez...

Não posso amá-la. Ela é boa demais para mim. Cheia de ternura e de sensualidade, com olhos maliciosos e inocentes e uma boca madura como uma maçã... ela é como um riacho cristalino, ou a sombra de uma árvore numa tarde quente, ou como correr na chuva...

Estar só e longe dela talvez seja a melhor coisa a se fazer nessa situação. Por mais que eu a ame. Por mais que ela me ame.

Estou apaixonado e estou sangrando...



3. Anxiety

Meus pés não param quietos. Minha mente é um turbilhão. Minhas mãos são fogo e gelo.

Cada segundo é mil anos enquanto ela não cruzar aquela porta e não me trouxer uma notícia. Que fosse algo bom, torço secretamente, mas pela experiência que tenho, a vida só te traz coisas ruins. Não vai ser algo agradável de saber, mas... é melhor que não saber.

O relógio marca a hora enquanto o ponteiro dos segundos gira com um sonoro "tum/tum/tum/tum...". Onde está ela com minha resposta? Por que o tempo não passa? Por que eu estou aqui?

Cada pessoa que entra na sala abre e fecha em mim uma porta feita de cacos de vidro. Todas não são ela, todas são aquilo que não preciso. Eu a quero aqui, e a quero agora.

Mas o agora nunca chega e sempre passa.

Onde está você?



4. Despertar

Tanta coisa mudou nestes últimos anos em que estive fora. Nada mais está no lugar de antes...

Ali? Jogávamos futebol lá. Mais adiante ficava a mercearia de seu Jonas. Onde está aquela árvore onde sentávamos para ver o pôr do sol?

Conhecidos passa por mim e jogam conversa fora. Tempo inútil, penso eu, querendo me ver livre dessas frivolidades. Eles percebem minha diferença e se afastam.

- Você mudou" - dizem eles, e isso é ao mesmo tempo uma acusação e uma constatação.

- Sim, eu mudei - digo num mea culpa cansado e entediado. - Vocês continuam os mesmos, mas eu mudei. Talvez para melhor, quase certeza de que foi para pior.

A estrada de terra agora é uma via asfaltada. As crianças não mais correm ali, por medo dos carros. Apenas se escondem atrás de suas parafernálias eletrônicas enquanto seguem destinadas a tentar preencher o sonho dos pais e falhar miseravelmente.

Quanto tempo passou até que eu voltasse aqui para acertar as contas com meu passado? Pelo menos duas décadas. Mas eu não lamento nada.

*     *     *

Meu pai está deitado sobre a cama, um esqueleto envolto em carne.

- Ele estava apenas te esperando - disse mamãe, chorando.

Caminho em silêncio até a cama. Uma mão esquelética se ergue em minha direção. Um par de olhos estranhamente límpidos me encara.

- Filho, perdoa teu pai - diz ele num fiapo de voz.

- Pode dormir, Pai - digo eu, sem dizer nem que sim nem que não.

Ele toma para si o que acha que eu dei e morre sorrindo.

Abraço minha mãe e saio para a rua onde vivi até os dezoito anos. Sinto-me diferente, livre da culpa, do peso de não ter vindo visitá-lo antes, de não ter ligado para saber dele.

É como se eu acordasse de repente de um sono intranquilo.

O Rei está morto, penso eu.

- Viva o Rei - falo sozinho, apressando-me para ir embora dali.



5. Fear

- É câncer - diz o médico.

- Quanto de certeza, doutor?

- Não há dúvidas. Há anos ele deve estar aí, crescendo, tomando de conta de seu corpo por dentro. Consumindo sua carne, seu sangue, suas forças. O senhor tem alguns meses de vida. Um ano, no máximo, se fizermos o tratamento - mas é apenas um adiamento. Radioterapia, quimioterapia... mas nada irá salvá-lo do destino final.

- Eu vou sofrer muito?

- No fim sentirá dores que talvez nem a morfina alivie.

- Certo - falei, e fiquei em silêncio. Depois de alguns instantes olhando para mim, ele pergunta:

- O senhor não está com medo?

- Um pouco - falei. - Mas isso passa. no final, não morreremos todos?

O médico deu de ombros. Quantos anos deveria ter? Vinte e dois? Vinte e três?

- Vou prescrever-lhe alguns medicamentos que lhe ajudarão quando as dores começarem.

- Certo - digo eu.

Ele se agarra a caneta. Ouço o som rascante da ponta metálica contra o papel e sinto uma estranha vontade de rir.

- Aqui a receita - diz ele. Espero o senhor daqui a quinze dias, para corrermos exames de rotina.

- Certo - digo, levantando-me. Estou quase saindo quando ele diz:

- O senhor acredita em Deus?

Penso bem antes de responder. Resolvo ser sincero.

- Neste momento? Acredito.

O jovem médico sorri e diz:

- Então vai ficar tudo bem.

Saio e fecho a porta atrás de mim. Repentinamente um estranho medo me sobe até a garganta e eu vomito num cesto de lixo no corredor. A ficha cai enquanto as pessoas passam por mim - vivas, saudáveis, coradas. Eu tenho quarenta anos e vou morrer.

- Não tenha medo - diz uma enfermeira que passa por mim. - Seja lá o que for, vai ficar tudo bem.

Limpo a boca com um lenço de papel e jogo no cesto cheio de vômito meus exames e a receita médica. Agarro-me com meu medo e saio cantarolando pelo corredor do hospital.

Está um lindo dia lá fora.

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Boa noite.

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