Dia 230
Children of Men - 2006
Dir: Alfonso Cuarón
Elenco: Clive Owen, Michael Caine, Juliane Moore
Eu nunca sei como começar uma postagem.
Boa noite? Quer dizer, e se você estiver lendo isso às 9
da manhã? Às 3 da tarde? Se você estiver lendo isso daqui a 300 bilhões de anos
e o tempo nem mesmo existir?
Enfim. O filme de hoje não tem absolutamente nada a ver
com o parágrafo acima. E até tem, pois ele fala sobre o fim. O nosso fim.
Eu costumo mencionar sempre um humorista americano
chamado George Callin. Carlin, falecido em 2008 aos 71 anos, descrevia a
humanidade como uma raça extremamente arrogante e presunçosa que acha que o
mundo vai acabar no dia em que a própria humanidade deixar de existir. E que
essa era a razão pela qual nós tememos o aquecimento global: por que ele vai
acabar com a gente, com a nossa raça. O aquecimento global, segundo Carlin, não
é um problema do planeta. É um problema nosso. Por que, mesmo que nós venhamos
a morrer todos, o mundo vai ficar ok. E não importa o quanto nós destruamos e
envenenemos o planeta, nós nunca seremos capazes de acabar com toda a vida na
Terra. Nós só seremos capazes de acabar com a NOSSA VIDA.
A premissa de Filhos da Esperança, do diretor Alfonso
Cuarón, é basicamente essa: o fim da humanidade. Nela, em um futuro breve, a
nossa espécie chegou a um ponto de sua existência no qual as fêmeas
simplesmente tornaram-se incapazes de procriar, fazendo com que crianças parassem
de nascer e a humanidade fosse fadada à extinção breve. Para piorar a situação
o mundo virou uma zona de guerra. A todo momento se tem notícia de ataques
terroristas em qualquer ponto do globo. Homens se explodem, granadas invadem
janelas, prédios são demolidos por carros entupidos de explosivos, pessoas
aleatórias são assassinadas nas ruas sem nenhuma razão... Esse é o nosso
habitat agora: o caos absoluto e a perspectiva de uma vida breve e uma morte
violenta.
E, para piorar ainda mais a imagem do planeta, o cidadão
mais jovem da Terra, o último bebê nascido do qual se teve notícia em mais de
20 anos, Diego Ricardo (então com 18 anos) foi esfaqueado até à morte ao sair
de um bar na Argentina. E aqui vem a primeira grande sacada do longa: um
sujeito que virou uma celebridade global num mundo no qual nós estamos extintos
simplesmente por ter sido o último ser humano a nascer antes que todas as
mulheres da Terra se tornassem estéreis. O cara se tornou um símbolo, se tornou
um objeto de idolatria, é quase que um santo: pessoas viam nele algo a ser
adorado, a última criança da Terra.
Dá pra entender o choque de se ver na TV, em um futuro no
qual estamos destinados à extinção, que o último bebê da Terra foi esfaqueado e
morto? Por um fã? É algo do nível de estar vendo TV e descobrir que John Lennon
foi morto por um fã ou que Elvis morreu, ou que Jesus retornou à Terra e foi
morto outra vez! Tá, viajei.
Aí você vê, em um café cheio de gente em frente à TV, um
grupo de pessoas chorando a morte do sujeito, como a de um parente, como a de
alguém amado.
Mas logo percebemos: eles não estão chorando a perda de
alguém amado, talvez eles nem mesmo se importem com a morte de Diego Ricardo.
Eles estão chorando a perda da esperança.
E é nesse café, no meio dessa gente desesperada, que está
Theo Faron, personagem de Clive Owen, não dando a mínima para a grande perda da
humanidade. O cara pega seu cappuccino, sai do lugar e nós recebemos uma das informações
mais chocantes do filme: ao vermos uma rua semelhante às ruas da Índia,
empoeirada, cheia de pessoas, cheia de carros horrivelmente mal cuidados,
bicicletas bizarras, motos feitas de peças sobressalentes, lixo espalhado nas
calçadas... Nós vemos cruzando a esquina um ônibus vermelho de dois andares e
um letreiro nos informa de que estamos em Londres, no ano 2027. E nesse momento
uma bomba explode em um prédio, causando uma destruição considerável,
aumentando ainda mais o choque que já havia sido causado pelo visual de Londres
e quase causando a morte do protagonista, Theo.
E uma mulher surge na tela, roupas rasgadas, cabelo
desgrenhado, gritando desesperadamente e carregando o próprio braço arrancado
pela explosão.
Esse é o nível de choque que Filhos da Esperança causa só
em seus dois primeiros minutos, antes mesmo de aparecer o letreiro branco na
tela escura anunciando o filme que estamos para ver. As duas horas que
passaremos prendendo o fôlego, com os olhos grudados na tela, sem mover um
músculo da cara.
O Mundo entrou em colapso, entregue a uma guerra diária
que se abate sobre todos os pontos do globo. Não há lugar seguro, não há trégua,
não há “nações unidas”, apenas violência e terrorismo enquanto parte da espécie
tenta viver o que resta de seus dias, tenta se adaptar à nova realidade.
E Theo é um desses. Pelo pouco que sabemos do cara, ele
tem um passado dramático, com uma família que não é mencionada e, pela cara de
poucos amigos do sujeito, essa história de família não terminou bem.
Então, dia desses, Theo é sequestrado por uma “facção
terrorista” chamada “Os Peixes” (quantas aspas por aqui hoje) e descobre que uma
das mulheres de seu passado, Julian (Juliane Moore) é uma das integrantes da
facção. E ela acaba envolvendo Theo em uma situação atípica. Os Peixes são uma
espécie de resistência. Para variar o governo está empenhado em sair da reta e,
de tabela, ferrar o povo. Os Peixes são uma resistência contra o governo, um
MPL com coragem e atitude, que toma medidas violentas para lidar com uma
situação violenta. Uma das medidas do governo britânico (que se repete em todo
o mundo) para a “proteção” da população é deportar de forma violenta e
totalmente indigna qualquer estrangeiro do país, qualquer um que não fale
inglês com sotaque e não tome chá com o dedinho levantado. O que vemos por aí
em estações de trem é gente de todo canto do mundo, russos, espanhóis, iraquianos,
presa em gaiolas de ferro guardadas por policiais armados, embaixo de chuva e
de sol. Os Peixes decidiram tomar para si a luta dos imigrantes, decidiram
brigar pela liberdade dos imigrantes.
O grupo de Julian ficou encarregado de proteger a todo
custo uma jovem, Kee, e ajudá-la a chegar a um barco para fora do país, O
Amanhã. Porém os caminhos para O Amanhã são tortuosos, violentos, balas voando
em todas as direções, carros em chamas, explosões e morte por todo lado, milícias
violentas, o governo fazendo de tudo para dificultar as coisas... O que faz de
Kee algo tão precioso, alguém a ser protegido a todo custo, até mesmo com a
própria vida? Ela está grávida.
Então Theo, atordoado mais que pela explosão que quase o
matou dias antes, decide comprar a briga e garantir a segurança de Kee e da criança que ela traz dentro de si.
Alfonso Cuarón é um diretor mexicano com uma carreira
relativamente extensa. O currículo do sujeito é tão notável quanto eclético, um
daqueles caras que dirigem o que querem, quando querem e constroem para si uma
carreira de respeito. A filmografia dele conta com coisas como A Princesinha
(sim, o clássico da Sessão da tarde), Grandes Esperanças, adaptação do livro de
Charles Dickens com Ethan Hawke e Robert De Niro, e até mesmo um capítulo de
Harry Potter (o terceiro, para mim o melhor filme). O cara soube fazer bem
qualquer coisa que tocasse, soube usar seus trabalhos para alavancar na direção
correta a própria carreira e, hoje em dia, é um dos diretores mais respeitados
de Hollywood. UM MEXICANO! Não é pra qualquer um, o cara merece a atenção que
recebe.
Filhos da Esperança é seu sexto longa, o quarto em solo
americano. Um dos filmes mais desesperadores nos quais já bati o olho, um épico
futurista (ainda que próximo) sobre sobrevivência e medo do fim. Do nosso fim. A
ideia que o filme dissemina é aquela que eu mencionei no longínquo início desse
texto: o fim do mundo pela ótica humana. Sem grandes catástrofes, sem apocalipse
zumbi, sem meteoro ou uma última grande guerra mundial. O fim pela pura e
simples descontinuação da espécie. O planeta cansou de nós e decidiu nos
exterminar assim como nós exterminamos as formigas no nosso canteiro ou as
joaninhas na plantação de tomate. Children of Men é como um Fim dos Tempos
guiado por um diretor que tem noção de absurdo e, acima de tudo, talento.
É uma ideia que amedronta, um fim próximo e inevitável e
uma visão peculiar sobre como nós vamos invariavelmente caminhar por vontade
própria até a beira do abismo.
E, no fim, uma chama de esperança, ou um motivo que faça
valer a pena sentir medo por mais um dia.
Eu também nunca sei como terminar um texto, então... Boa
noite?
Enfim.
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