segunda-feira, agosto 12, 2013

Achtung Baby - U2, ou: O trem das cinco.

Dia 224.
(deixa o som rolando)

Eu sempre sentava à janela do vagão que dava para o nascer do sol. Gostava de contemplar a luz enquanto ela vinha atravessando em fachos e fótons a neblina que se formara durante a noite sobre os morrotes que cercavam a linha do trem das cinco.



Seguia ali, inócuo, isolado, hermeticamente selado em meu abrigo cinza. O vento frio da manhã escura entrava pela janela semi-aberta, e aquela luminosidade alaranjada e preguiçosa que se erguia do leste lentamente mudava as cores e a textura das coisas que passavam em borrões em frente de meu olhar ao mesmo tempo atento e disperso.

O trem desacelerou lentamente e parou naquela primeira estação após aquela em que ele embarcara. Lia-se na placa: "Estação do Zoo", e eu lembrava das manhãs de domingo em que visitara aquele zoológico com meus pais, e da emoção que fora correr entre corredores e jaulas e gaiolas fingindo estar sendo caçado pelo tigre, pelo leão ou pelo grande urso chamado Shardik, o Rei das Profundezas.


"Zoo Station" era a primeira faixa do disco que eu ouvia. Sorri. Em meus fones de ouvido, o U2 desfazia minhas lembranças em suaves distorções de voz e guitarra. Sensações. Sentimentos. Emoções.

Bem melhor que o mundo real, pensei. A transição entre as faixas ocorreu suavemente, e
logo iniciou-se a caleidoscópica "Even Better Than The Real Thing". O trem das cinco reiniciou seu movimento de vai-e-vem em direção a seu destino.

Entre dormir e sussurrar a música, percebi no vagão quase vazio uma linda moça de olhos castanhos. Nossos olhares se encontraram brevemente, e lamentei não ter me barbeado. Ela sorriu como se lesse meu pensamento e dissesse: "Bobagem". Sorri de volta, meio tímido, desejando que ela descesse na próxima estação ou que ficasse até o final, onde eu desceria. De repente, gostaria muito que ela fosse parte de minha história. Ela era única. "One", sussurrava Bono, junto com sua banda que parecia saber cada instante meu.

Ela levantou de seu lugar e veio caminhando, equilibrando-se, como se flutuasse independente do movimento do trem. Seus passos, seu quadril, seus cabelos... era como a Vênus de Boticcelli totalmente perdida no tempo e no espaço, um milagre, uma inconsistência.

Até que ela sentou a meu lado. Cheirava a orvalho e flores de maracujá.

Tinha covinhas nas bochechas enquanto sorria, e seus olhos eram pincelados com pequenas gotas esverdeadas. Ela exigia atenção, paixão, segredos e terremotos. Seu nome era revolução e guerra, amor intenso, egoísmo e fogo.

Percebi que ficaria com ela até o fim do mundo.

Bono e The Edge tocavam "Untill The End Of The World". Já não sabia mais se eu era um ser humano ou a letra de uma música. Já não mais sabia se sonhava. Apenas me perdia no contemplar daqueles lábios rosados, naquela boca pequena, que dizia...

- ... selvagens?

- Desculpe - disse eu, retirando o fone da orelha esquerda - não te ouvi direito.

- Você não tem às vezes a sensação de estar cavalgando cavalos selvagens enquanto anda de trem?

As músicas continuavam passando em meu ouvido direito. Era como a trilha sonora daquele meu momento. "Who's Gonna Ride Your Wild Horses?", perguntava Bono. E eu não sabia, mas sentia que tinha de ser eu quem deveria cavalgar minha vida, estes cavalos selvagens.

Era uma liberdade irreal, um sonho perigoso. Você punha suas vida nas mãos de uma força incontrolável... mas se você não fizesse assim, quem os cavalgaria? Nossos desejos nos impeliam sempre adiante, de conquista em conquista, de decepção em decepção, até a próxima novidade, ou até a próxima despedida.

- Sim - respondi. - E pensar nisso me faz perceber como a vida pode ser cruel.

- Tão cruel - disse ela - que a viagem acaba e, no fim, mal sabemos para onde ir.

"So cruel", dizia o U2.

Quem é você, pensei, e ela pareceu ler meus pensamentos novamente. Seu sorriso de dentes pequenos e perfeitos por um instante foi mais brilhante que o sol nascente.

- É - falei, meio sem saber o que dizer, meio percebendo que não havia o que dizer.

Ela pegou o celular na mochila cor de rosa e perguntou se podia tirar uma foto pela janela. Eu disse que sim, e ela inclinou-se sobre mim suavemente. Enquadrou a paisagem e guardou-a ali apertando o botão, enquanto houvesse memória.

- Às vezes eu queria ser uma mosca - disse ela.

- Para entrar em lugares proibidos e ver coisas que não deveriam ser vistas? - perguntei ao som de "The Fly".

- Só pra voar mesmo, eu acho - disse ela, e dessa vez um riso cristalino brotou em toda a sua selvageria. Uma erupção de riso. Riso em rios de lava. Senti-me aquecido e derrotado, mas perder para ela não foi ruim. Foi diferente. Engraçado.

- Você sempre pega o trem nesse horário? - perguntei. - Nunca te vi antes.

- Hoje é a primeira vez. Acabei de me mudar... estou indo até a estação final para conhecer a linha, depois volto para casa.

- A vida tem uns caminhos meio misteriosos - disse eu.

"Misterious Ways".

- Por que você diz isso? - perguntou.

- Porque... bem, não sei bem porquê. Acho que foi por causa de algo que eu escrevi ontem, e que me ocorreu de repente. "Você vive tentando abarcar o mundo com os braços/ e sabe que é impossível/ Há coisas que não se pode controlar/ mas mesmo assim você segue tentando se antecipar ao destino..."

U2 continuava com seu roteiro: "Tryin' To Throw Your Arms Around The World", e eu me sentia como se fosse apenas um personagem numa história fictícia. Mas mesmo que fosse assim, estava valendo a pena.

- Lindo isso - disse ela. Covinhas. Sorriso. Olhos brilhantes. - O que você tá ouvindo que te deixa tão inspirado?

- U2. "Achtung Baby", conhece?


Ela fez que sim.

- Quer ouvir comigo? Ainda faltam umas dez estações, eu acho.

- Claro! - disse ela, e virou o rosto deixando seu ouvido para que eu lhe encaixasse o fone. Retirei uma mecha de cabelo do lado do seu rosto para liberar sua - linda - orelha e percebi que ela corava junto comigo. Calor. Calor de estar meio envergonhado e excitado, calor pelo contato com os primeiros raios de sol e sua radiação ultravioleta - fonte de vida, fonte de morte. "Deus dá, Deus tira; É assim que Ele é", dizia o antigo ditado. Eles executavam "Ultraviolet" em nossos ouvidos com a mesma intensidade de uma manhã.

As estações passavam lentamente enquanto ouvíamos o som viciante do U2. Cada riff de guitarra, cada solo de bateria, cada pulsação do baixo... a paixão do Bono, sua entrega, a voz rouca... e eu ali, apaixonando-me perdidamente por aquela desconhecida... meu coração parecia um acrobata insano num picadeiro em chamas. "Acrobat", tocavam eles. Tocava eu.

O tempo era agora estranho, flexível e cruel: ora era infinito, ora era como uma contagem regressiva sádica. Na última estação nós nos separaríamos. Teria eu coragem de perguntar seu nome, seu número, seu e-mail? Teria ela sentido algo por mim?

O trem parou na última estação. Recolhi meu fone de ouvido ao som de "Love Is Madness". Havia algo entre nós?

Caminhamos rumo à porta, eu com minha mochila preta, ela com a mochila rosa. Ela andava como se flutuasse, eu pesava toneladas, preso ao chão, preso a uma timidez nunca antes sentida.

- Como você se chama? - ela perguntou.

- Eric. E você?

- Layla.

Ficamos sorrindo um para o outro, abobalhados, os olhares ora se encontrando, ora se desviando rumo a qualquer coisa que servisse como um pretexto para desfazer e disfarçar aquela estranheza. Tomei coragem, aspirei a loucura da manhã e explodi numa voz meio sussurrada, meio cantada:

- Quero te ver de novo - falei.

Layla sorriu, pegou uma caneta na mochila e escreveu um número de telefone na palma da minha mão.

- Liga pra mim - disse, e me deu um beijo no rosto.

Ela colocou a mochila rosa nas costas e seguiu em direção à saída da estação.

Pus de volta os fones de ouvido e voltei para a última faixa do disco.

Sim, o Amor é Loucura, pensei ao ouvir a batida meio alienígena e distorcida de "Love Is Madness". Com essa certeza, segui para o trabalho.

Este iria ser um lindo dia.


*     *     *

Uma postagem diferente, um outro olhar sobre como um disco pode impactar a vida de uma pessoa. Poderia ter sido comigo, poderia ter sido com você. 

Ainda pode ser. quem sabe?

Cuidado, baby. Achtung, Baby.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por comentar no 01Pd! Seja bem vindo e volte sempre!