quinta-feira, fevereiro 28, 2013

Cantoria - Elomar, Vital Farias, Xangai, Geraldo Azevedo, ou: Sobre O Povo Do Norte/Nordeste

Michel 54. Dia 59.

A música tem o poder de alcançar profundidades e veredas que nenhuma outra arte mais possui. É como se houvesse vibrações e reverberâncias secretas e misteriosas que nos atingissem num nível desconhecido, lá onde os cromossomos se fundem com o que em nós é etéreo, imutável e verdadeiro.

A música seria então o casamento sublime entre forma e substância, a suprema fusão entre identidade e esquecimento.

Divagações á parte, vim falar hoje de um disco muito especial. Uma obra que condensa em si o Norte úmido e o Nordeste seco, e os espaços que entre eles se cruzam. Lugares por vezes inóspitos e cheios de mistérios, lugares onde Deus e o Diabo tem poderes únicos e pouco ortodoxos, onde o cinza do céu e o marrom dos rios se mesclam com o sépia ou o verde da paisagem trazendo a mensagem criptografada das divindades: a existência é, em si, bela e terrível.

Que disco é esse que transmite tal sensação, você se pergunta. Ao que eu respondo: uma das obras primas da Música Brasileira, pouco conhecido, menos ainda divulgado: "Cantoria" (1984).

O trabalho de quatro grandes artesãos da música nacional - Elomar, Xangai, Geraldo Azevedo e Vital Farias - é todo levado e sustentado por suas vozes e violões. A maestria demonstrada pelos protagonistas deste álbum - gravado ao vivo no Teatro Castro Alves, em Salvador - tanto em relação ao instrumental, quanto ao aos vocais, é tremenda. Raro de se ver hoje em dia tanta habilidade, tanto talento. Raro de se ouvir em tantas músicas tamanha identificação para com o arquétipo norte-nordestino, o herói sofredor, endurecido pelas intempéries e a macia do pelos amores por belas moças de simples vestidos, cotovelos nas janelas, mãos suaves e sorrisos no rosto.


A relação com o sagrado é de respeito, temor e humildade. Um a um, dois a dois, todos juntos, os cantores nos entregam uma primorosa radiografia da vida daquele que se aventura no que os ingleses chamam de wilderness. Meter-se no mato, na caatinga, embrenhar-se no desconhecido, entregar sua vida nas mãos de Deus, ser constantemente tentado pelo Coisa-Ruim... faz parte da luta diária, do que define quem vive sob a chuva, sob o sol, incessantes, inclementes, indiferentes.

Não há classificação que abarque a gama de significados e experiências contidas em Cantoria. É uma vivência, é um encantar-se, é identificar-se - ou não - com o sangue, a alma e as tripas. Porque para ser do Norte, para ser do Nordeste, seja sina, bênção ou maldição, é preciso que se entenda de água - que ela vem, que vai, e que, ás vezes, ela simplesmente não chega.



Um disco para se ter, para se ouvir, para se viver. Um disco único, que mostra todo o poder que a musica pode ter na vida de alguém. 

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P.S.: Às vezes tomo a liberdade de criar palavras que soam melhor que as "corretas". Se você encontrar por aí uma ou duas palavras escritas de maneira errada, não se assuste. Se elas assentarem no texto, tá tudo bem.


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