sexta-feira, outubro 04, 2013

Crowded House - Crowded House, ou: ...numa pista de dança na década de 1980

Dia 277.

Há algum tempo atrás - anos, uma década ou mais - escrevi este texto ao som do disco de hoje: "Crowded House" (1986), álbum de estréia da banda neozelandesa de mesmo nome. Volto e trago o texto para o 01Pd. Não é lá o melhor texto que já escrevi, mas...

Aí está.

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A Dança (1,2,3 - 1,2,3)


Ele se apaixonou pelo seu riso fácil e sincero, e pelos olhos negros que cintilavam com uma luz sublime.


Adorava essa palavra: sublime. Fazia-o pensar em algo único e especial.

Na pista de dança, ele ensaiava um básico 1,2,3 – 1,2,3 com os braços para cima, meio perdido, meio tentando se perder, quando a viu/sentiu/ouviu/cheirou.

Ela estava suada, os cabelos castanhos amarrados atrás da cabeça, uma camiseta branca, um perfume floral e uma dança – sim, pois ela sabia dançar. Era dona de cada músculo, cada passo, cada gesto. Estava a menos de três metros dele, e a única coisa que ele queria era poder tocá-la.

E a energia do universo condensava-se ao redor dela criando um halo especialmente único de beleza e agressividade, transformando a dança dela num nervoso processo de entropia místico-musical, até que

os olhos dela encontraram os dele.

Em momento algum ele esperava que aquilo acontecesse: ela veio para junto dele num misto de dança e andar, gingando pela pista, rompendo a multidão com uma suavidade quase líquida, e naquele momento o tempo pareceu se contrair e parar, pois por algum motivo inexplicável, só havia ele e ela ali.

Eles começaram a dançar, achando alguma harmonia no caos. Ela ria dele, de seu jeito desengonçado, e ele ria da risada dela.

Tão intimamente estranhos.

Ele a tocou suavemente, e ela cedeu a seu toque - que era forte, imperioso, viril como um conquistador espanhol invadindo as Américas puras e livres do cristianismo sanguinário.

O beijo não tardou a acontecer, vindo à crista de uma onda de pressão urgente e obsessiva, cumulando os esforços e os anseios e sonhos de um rapaz inseguro e cheio de expectativas.

Mas o destino – ou fado, ou sina – tinha outros planos, pois a moça logo o largou e, rodopiando como um dervixe alucinado, doou-se a outros braços tal qual tinha se dado a ele antes.

FrustraçãoDelírioLoucuraMedoRaivaSolidãoRevolta.

Nada mais fazia sentido para o rapaz. Onde estava o amor, aquele que povoava os livros de poesias e os filmes que ele vira?

Ele fugiu e refugiou-se no balcão mais próximo, cercado de estranhos, e pediu uma dose generosa de tequila. Talvez aquela bebida alienígena fizesse com que ele se sentisse em casa, aliviando aquela estranha mistura de decepção e excitação que tomara conta dele.

Bebeu, bebeu, e bebeu, até que nenhum sentimento tivesse mais supremacia sobre os demais, e até que o bar fechou e todos se foram, e ele foi cambaleando até a praia para ver o nascer do sol e dormir na areia e acordar as nove da manhã de ressaca com a cabeça quase explodindo e o gosto de vômito na boca.

Ele nunca esqueceu a moça. Sua carne se lembrava da pressão, do cheiro, do gosto de sua língua, de sua temperatura, de sua voz rouca roçando seu ouvido e arranhando sua alma.

* * *


Passados trinta anos, pais de três filhos, gordo e careca, ele sempre foi consciente de que nunca mais se sentiria daquela maneira, e que aquela noite jamais se repetiria, nessa vida ou em outras – se existissem.


Chovia, o relógio na cabeceira marcava em caracteres vermelhopulsantes 2:37 da manhã.

Ele beijou a testa da esposa, que se mexeu incomodada – pelo frio, quem sabe – e a cobriu com seu cobertor.

Teve então uma revelação: Percebeu que nunca se pode conhecer ninguém. Seus filhos, sua mulher, seus pais e irmãos e amigos, uma legião de estranhos. Ele próprio era um estranho para si mesmo. Mas, amanhã era sexta-feira, e ele deveria sair de casa às sete, pois era diretor-geral, e os diretores têm de dar exemplo chegando na hora.

Mas

Talvez depois do expediente ele saísse para tomar uma tequila e dançar um pouco, 1,2,3 – 1,2,3.

E talvez aquela moça – que agora deveria ser uma mulher - se aproximasse dele com mil promessas vazias na forma de um beijo. Mesmo sabendo que isso era improvável, esperava que não fosse impossível

porque fazia trinta anos que ele a esperava, e dançava 1,2,3 – 1,2,3,

Mas ela se perdera nos braços de outros numa pista de dança na década de 1980.

*     *     *

Ele deitou novamente sua cabeça insone sobre o travesseiro e tentou esquecer de tudo, do que tinha feito e do que havia deixado de fazer. Em sua mente, a música daquela noite tocava insistentemente, e ele revisitava com prazer e culpa o sabor dos lábios daquela menina que ficou para trás.

"Hey now, hey now/ Don't dream it's over..."

*     *     *


O disco é excelente. Cinco luas.

Boa noite.

Bom fim de semana.

Até.



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