Putz, faz uma cacetada de tempo que eu não escrevo sobre
um livro por aqui, né? Isso por que a nossa querida Daniely Araújo está fazendo
um trabalho maravilhoso no quesito literatura na sua sessão Orelha de Livro, um trabalho realmente
excepcional. E eu gostaria de pedir licença à Daniely para que eu pudesse me
apossar um pouquinho do poder da palavra cedido à ela para falar sobre um dos
melhores livros que li este ano (reparou que todo livro que eu leio recebe esse
título? Eu escolho bem os mundos imaginários nos quais me aventuro): O Oceano
no Fim do Caminho, de Neil Gaiman.
Livro mais recente do autor britânico, responsável por
clássicos como Deuses Americanos e Sandman, The Ocean at The End of The Lane
começa com o protagonista, um cara de 47 anos, voltando à cidade onde passou a
infância para um funeral. No caminho, sem saber exatamente onde ir ou o que fazer, ele decide visitar a casa de uma família de
quem foi muito próximo em sua infância: As Hempstock, duas senhoras, uma de
meia idade e outra bastante idosa, respectivamente a mãe e a avó de uma
amiguinha de infância que ele não vê há quarenta anos.
E é essa visita que traz à tona todos os acontecimentos
do livro, tudo o que aconteceu na infância do sujeito, mais precisamente quando
ele tinha sete anos e sua família enfrentou a maior crise pela qual já
passaram. Uma crise não só financeira, mas estrutural que teve início no exato
momento em que, para arrecadar dinheiro, os pais do narrador, então aos sete
anos, decidiram alugar seu quarto e realoca-lo para o quarto da irmã mais nova.
O primeiro a alugar o quarto foi um minerador de opala
sul africano que já chegou ao lugar de modo brusco: atropelando o gato de
estimação que o garoto ganhou de aniversário e, como pedido de desculpas, dando
a ele um novo gato, este um psicopata assassino que não gostava de ninguém e só
aparecia em casa para comer.
Até aqui Gaiman apresenta personagens, especialmente o
principal, o garoto cujo nome nunca é revelado. Sem grandes descrições, sem
detalhes demais, tudo o que sabemos sobre o garoto e sobre a família é o que
ele mesmo, baseado nas lembranças que traz dos seus longínquos sete anos de
idade, nos conta. Até aqui sabemos bastante sobre ele, mas principalmente que
ele não sai muito de casa, não tem contato com outras crianças e que gosta mais
de livros do que de pessoas. Rola uma identificação imediata, pelo menos comigo
rolou.
As coisas começam a ficar estranhas no exato momento em
que o minerador que se mudou para o quarto do garoto é encontrado morto dentro
do carro da família em frente a uma fazenda que fica a poucos quilômetros da
casa onde ele mora. O sujeito roubou o carro, foi para a fazenda e se matou lá
dentro. E graças a esse acontecimento que o garoto conhece a família Hempstock
e, principalmente, Lettie, uma menina de onze anos que vive na fazenda com as
duas senhoras já mencionadas.
O garoto e Lettie tornam-se amigos imediatamente, uma
amizade estranha baseada na curiosidade do garoto sobre a menina que fala sobre
coisas estranhíssimas com uma naturalidade absurda, como se fosse algo que todo
mundo soubesse. E ele logo descobre que ela e as duas com quem divide a fazenda
sabem mais sobre a morte do minerador que a própria polícia e que essa morte é
bem mais bizarra do que parece.
O tempo todo o protagonista e o leitor estão na mesma
posição de observadores e, enquanto o garoto não compreender o que está
acontecendo ali, o leitor também não compreenderá. Um sentimento de confusão
que vai diminuindo gradativamente à medida que as Hempstock vão ganhando mais
destaque na trama, à medida que Lettie vai dando pistas displicentes sobre o
que está acontecendo ali.
E então, quando finalmente cai a ficha, percebemos que
estamos em um universo tão bem sacado, tão bem amarrado e construído quanto o
de Deuses Americanos, no qual Gaiman pega o mundo que conhecemos, o mundo no
qual vivemos, e adiciona uma dose sutilmente distribuída de fantasia e magia.
Uma dose sutil que faz toda a diferença em relação ao mundo que temos como “real”.
É quando finalmente compreendemos de forma bastante
superficial (é algo muito mais complexo que as pouquíssimas páginas do livro
podem mensurar) quem são as Hempstock, o que elas fazem, o que faz delas
pessoas tão importantes e, por fim, quando nos damos conta de que “O Oceano”
não é um livro sobre o garoto sem nome, apesar de ele ser o protagonista e ser
extremamente importante à trama. É um livro sobre as três mulheres Hempstock.
O que fica bem claro quando, ainda no meio da confusão
inicial, Lettie leva o garoto a um lugar além dos limites da fazenda, onde o
céu tem outra cor, o vento se move diferente, onde criaturas brotam do chão e
onde coisas estranhas habitam e espreitam e, chegando lá, os dois dão de cara
com algo que, a princípio, identificam como uma lona antiga, uma barraca ou
algo do tipo.
O primeiro vislumbre que temos da criatura que Lettie e o
garoto enfrentarão no decorrer da trama é esse: um ser disforme, feito de pano
velho e rasgado que habita o mundo entre os mundos. Um ser furioso e vingativo
que ameaça e pragueja, mas logo é derrotado por Lettie, sem grandes esforços.
E é aqui que temos uma primeira ideia de quem é Lettie
Hempstock, o que nos remete imediatamente a bruxaria, mandinga ou, pelo sotaque
que a garota adquire repentinamente, vodu. Aquela coisa meio Chave Mestra,
saca? Lettie, para derrotar o ser, recita palavras antigas em forma de música
de roda, palavras desconhecidas e impronunciáveis, que ela mais tarde revela
ser a palavra da criação, o vocabulário usado para criar e destruir tudo o que
existe e já deixou de existir. As Hempstock são antigas, a menina fala ter “onze
anos há muito tempo”, a avó diz até se lembrar da noite da criação da lua...
E, após o trabalho feito os dois voltam para casa, sem
danos maiores, sem ferimentos, mas o garoto está com a cabeça cheia de ideias,
cheia de perguntas sem respostas e com um bicho no pé. Um verme que se enfiou
no pé do garoto enquanto ele estava naquele lugar com Lettie. Ele arranca o
bicho fora e o joga pelo ralo em um dos momentos mais angustiantes do livro, o
que deveria permitir que ele pudesse, a partir daquele momento, ter uma vida
novamente normal.
Mas isso não acontece: logo em seguida os pais do garoto
recebem a visita de Ursula Monkton, uma mulher elegante que vem de outras
terras se hospedar no quarto do garoto e, como forma de pagamento, é contratada
pela mãe dele para tomar conta dos dois filhos.
Não tarda até que Ursula revele quem ela realmente é: a
coisa feita de pano que fugiu de seu mundo usando o garoto como portal. Ursula
é o verme.
E ela faz da vida do moleque um inferno, domina os pais
do garoto, os dobra à sua vontade, obriga os dois a fazerem coisas absurdas, o
pai do garoto enlouquece por completo, chegando ao extremo de quase matar o
filho, trair a esposa com Ursula, fica maluco mesmo.
E, para piorar, Ursula impede o garoto de sair de casa e
recorrer à ajuda de Lettie, obrigando-o a enfrentar sozinho um inimigo invencível
em um mundo cujas regras são completamente desconhecidas.
O Oceano no Fim do Caminho é um livro curtinho, pouco
mais de 200 páginas, mas que tem um conteúdo condensado que renderia uma série
literária de vida longa. Seus personagens são fantásticos e extremamente ricos,
um monte de culturas, mitologias e referências misturadas que dão origem a pessoas
extremamente críveis, totalmente reais dentro do contexto, dentro da “fantasia”
de Gaiman. O livro tem uma mitologia completa que pode até fazer ligação com
outras obras do autor, obras como Coraline (vilões feitos de pano que habitam
mundos que são o nosso, mas não são o nosso) e Deuses Americanos, Sandman até,
por que não?
História fantástica, personagens lindos, cara! As três Hempstock
tem tanto potencial e todo ele é aproveitado de uma forma tão brilhante, tão
sutil e sem exageros narrativos comuns a livros de fantasia, dá um prazer
imenso de ler tudo o que é referente a elas na história. O protagonista em si é
ótimo também, é muito bacana ver todo o desdobramento através dos olhos do
menino (que é claramente baseado no próprio autor), mesmo que o crescimento
dele como personagem seja pouco (afinal é um garoto de sete anos e o livro se
passa em poucos dias) e em certos momentos ele seja um mero recurso narrativo
(e em outros ele tenha espaço para mostrar a que realmente veio). O Oceano é
repleto de metáforas, cheio de sabedoria, cheio de lições. O próprio oceano que
dá título à obra é uma metáfora gigantesca: é um lago que Lettie insiste em
dizer que é um oceano, situado na parte de trás da casa onde as três moram. Em
certo momento esse “oceano” é parte de uma das passagens mais fantásticas do
livro, quem ler saberá do que estou falando.
Pode parecer que eu falei tudo do livro, que dei spoiler
pra caramba, mas não: vão com fé, eu não contei um décimo dessas 208 páginas,
eu não conseguiria nem em 210 páginas falar de um décimo dessa história
fantástica com que o espetacular Neil Gaiman decidiu nos presentear.
É uma coisa quase Miyazaki, aquele universo cheio de
regras que vão se explicando por si só, cheio de personagens sábios com poderes
fantásticos que fazem todo o sentido naquele mundo desconhecido no qual vivem:
o nosso mundo.
Surtei. Surtei bonito, escrevi por duas mais de horas
seguidas, já anoiteceu e os mosquitos tão me devorando vivo. Fico por aqui por
hoje, fiquem de olho que o dia não acabou! Hoje ainda tem cinema, música e...
Bati as três horas escrevendo, chega!
PS.: E como não podia faltar, mais uma propaganda gratuita do Submarino Nosso de Cada Dia, esse site que só me deixa mais pobre. Você pode comprar o livro >AQUI<
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