sexta-feira, julho 04, 2014

True Detective - 1ª Temporada, ou: Sobre a nulidade da vida humana



No terceiro semestre da faculdade de Filosofia eu tive contato com um dos maiores filósofos de todos os tempos na história da humanidade - embora ele com certeza fosse rejeitar este rótulo: Emil Cioran, romeno, cético, niilista, pessimista, lúcido. Eu tinha, então, vinte e quatro anos, e acreditava piamente no poder salvador e iluminador da Filosofia - embora já trouxesse em mim as raízes de um ceticismo amargo e cínico. 



Emil Cioran
Cioran me desestabilizou de uma maneira que nenhum ser humano ainda tinha feito. Com seu estilo seco e aforístico, ele ataca com seu cinzel ácido todas as certezas ilusórias de vida, esperança, felicidade e sentido. Em suma: tudo aquilo que você acredita ser parte integrante do que é ser humano não passa de uma ilusão, um traço evolutivo que já foi necessário à sobrevivência humana, mas agora é apenas um apêndice atrofiado e putrefato, que te venda os sentidos e te impede de ver que o mundo é apenas uma ruína degradada. Não há céu nem inferno, não há sentido nem processo histórico: somos apenas cadáveres ambulantes despercebidos de que a morte já chegou até nós há muito tempo. E mesmo ela nos abandonou.

Por que lembrei de Cioran, um de meus mestres? Por ter assistido aquela que é, disparada, a melhor série de 2014: True Detective, de Nic Pizzolatto (roteirista, novelista e produtor).


Estrelada por Matthew McConaughey  (Rustin "Rust" Cohle) e Woody Harrelson (Martin "Marty" Hart), Michelle Monaghan, Lili Simmons e Alexandra Daddario - entre outros, a série apresenta-se aos espectador de uma maneira que não é nova, mas trabalhada com maestria: os flashbacks. idas e voltas entre 1995, 2002 e 2012, num espaço de tempo de dezessete anos, onde podemos acompanhar as mudanças físicas e psicológicas de cada um dos personagens - principalmente da dupla principal, Marty e Rust.


Falando de técnica: a direção de cada episódio? Fantástica. Cary Fukunaga é o nome do cara, e aposto que daqui em diante ele vai ficar na mira de Hollywood, porque o cara é bom. Ele simplesmente não perde a mão, e tira o melhor de cada ator.

Fotografia: impressionante. Adam Arkapaw é o nome dele. Tons de cinza, verde e dourado, em muitos momentos uma realidade crua misturada com um cenário de pesadelo... você entra naquele mundo de maneira incrível.

Trilha sonora: absurda. O tema de abertura da série, "Far From Any Road", da banda The Handsome Family, já dá o tom desesperado, alcoólico e meio onírico da série. As outras músicas apenas acompanham, às vezes complementando o que é visto, outras aumentando a sensação de incerteza e confusão, outras insinuando-se de maneira serpentina em sua mente. Fantástica.


Roteiro? Amarrado e perfeito. A expectativa de um episódio para o outro chega a ser doentia. 

As atuações são estupendas. Desde a dupla principal - Harrelson e McConaughey - até aqueles que fazem apenas uma pequena aparição, todos são exigidos e entregam atuações tão críveis que chegam a angustiar. 

Poderia ser você ali, entre aquelas pessoas, vivendo numa terra abandonada por Deus e pelos homens, onde o rio e a floresta tentam tomar de volta aquilo que lhe foi tomado.


Agora, as impressões de escritor/editor deste site que tenta não ser técnico demais:

True Detective não é para você, caso tenhas apego pela tua sanidade, por tua fé, por tuas ilusões. Aqui, a regra é a seguinte: o homem é o animal mais cruel e perigoso que existe. Vivemos em uma sociedade de máscaras e vernizes, em constante negação de nossos impulsos e de nossas neuroses. Olhamos uns para os outros, vemos a loucura que subjaz sob a pupila de cada um e, mesmo assim, apertamos as mãos uns dos outros, e abrimos as postas de nossas casas e de nossas vidas para eles. E eles para nós.


A eterna luta entre o bem e o mal... só não está claro aqui quem é o bem nem quem é o mal. Cada um dos personagens pode ser desonesto e verdadeiro, terno e bruto, salvador e torturador. Em True Detective, a melhor coisa que poderia acontecer com você seria uma morte rápida.

Mas de todos os personagens, é claro que eu me identifiquei mais com Rust Cohle. McConaughey aqui olha para você com olhos cansados e diz: "Ei, não há nada aqui senão pele, ossos e uma promessa de esquecimento.". Um personagem feio, envelhecido e cansado, que vai se tornando - estranhamente! - cada vez mais parecido com você.

"Se a única coisa que torna uma pessoa decente é a expectativa de uma recompensa divina, então, meu irmão, esta pessoa é um pedaço de merda." - Cohle.
Rust me lembrou muito de Cioran. Por seu desprezo por tudo o que é ilusório e superficial, pela indiferença às tolas e vãs convenções sociais, pela visão da ausência de significado da vida, pela inexistência de vaidade, pelo estranhamento diante da realidade... pela lucidez - essa característica magna da filosofia do romeno.

E há também as relações com a obra de Robert W. Chambers, "O Rei de Amarelo". Citações e visões de Carcosa, das Estrelas Negras, ao próprio Rei... uma simbologia rica e doentia, tão imersa na história, e que aparece em momentos tão inesperados, que chegam a tirar seu fôlego.



O Rei de Amarelo aparece a você em sonhos, e isso, meu caro, não é legal.


"Eu te vi em Carcosa", diz um dos personagens a Rust, e sua confusão é tão grande quanto seu medo pelo reconhecimento da escuridão pútrida e amarelada que corroi as entranhas da Louisiana de dentro para fora.




True Detective é uma série sinestésica, que vai te invadir através da mistura insana de todos os teus sentidos. Você vai se pegar pensando nela e desejando ardentemente ver o próximo episódio. E a próxima temporada.


Abrace a escuridão e aceite suas limitações. Ninguém é bom, não há sentido algum na vida, e o Nada te espera. Nada te espera. Não há espera.


Não há esperança alguma.


*      *      *
True Detective chama por você.


“A consciência humana foi um trágico passo em falso na evolução. Nós nos tornamos autoconscientes demais. A natureza criou um aspecto distinto de si mesma. Somos criaturas que não deveriam existir segundo a lei natural. Somos coisas que operam sob a ilusão de possuírem uma identidade. Esse acréscimo de experiência sensorial e de sentimentos é programado com a total garantia de que somos alguém quando, na verdade, todo mundo é coisa nenhuma.”
Rust Cohle

E tenho dito.

Aqui falou o Ladrão de Almas. Até a próxima.

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